“A corrupção nunca vai acabar”
Filósofos debatem a natureza, o grau e o por quê da corrupção nas atividades cotidianas “Sempre haverá alguém capaz de beneficiar um em prejuízo de outro;
pais que abusam dos filhos, atos ilícitos na política. Mas nem por isso
será a maioria. Não creio que todas as pessoas se disponham a fazer
qualquer coisa para se beneficiarem”- Gonçalo
Márcia Abreu
À espera de um voo, o filósofo Gonçalo Armijos Palácios recebeu a reportagem. Naquela manhã ensolarada de quarta-feira, 10, os repórteres, de texto e fotográfico, o encontraram na área de alimentação do pequeno aeroporto de Goiânia. Sentado, lia um livro que não pôde ser detectado porque, rápido e gentilmente, o guardou em uma pasta para que os repórteres se acomodassem à mesa.
Observados por transeuntes e por uma banda de músicos da mesa ao lado — mais tarde por sua simpática mulher, os dois embarcaram para Buenos Aires, Argentina —, iniciaram uma discussão em torno da corrupção, ato ilícito de se obter vantagem, presente não só no Brasil, mas no mundo todo — em escalas distintas; portanto, universal. Ser corrupto ou ter uma ação corrupta em uma situação específica é da natureza humana, avalia Gonçalo, “mas não é inerente [à natureza humana].”
Na opinião do filósofo, a natureza humana se assemelha aos animais. Quando, por exemplo, um animal mata outro para se alimentar não quer dizer que seja oportunista, mas que faz aquilo porque é de sua natureza; o mesmo ocorre com os seres humanos. “A corrupção parte da natureza humana. É uma questão normal que ultrapassa nos limites.”
Chama a atenção de Gonçalo dados da ONG Transparência Internacional (de 2008), de que o Brasil está na 80º posição de índice de corrupção numa avaliação mundial, e de 2010, de que 64% dos brasileiros acreditam que a corrupção aumentou nos últimos três anos. O filósofo (docente da Universidade Federal de Goiás), que já foi professor nos EUA, não considera o grau de corrupção no Brasil alto ou assustador.
O que acontece hoje, segundo Gonçalo, é que os casos de corrupção aparecem mais, ou seja, são publicizados. Ao contrário de outros países que têm mais corrupção, mas que escondem os casos. Em sua opinião, o negativo é sempre maior que o positivo. Noutras palavras, basta ter conhecimento de alguns casos para achar que a maioria dos brasileiros é corruptível e/ou que o índice de corrupção no País é imenso. Para exemplificar, Gonçalo cita o trânsito da capital goiana.
“Em Goiânia, há muitos acidentes de trânsito. A impressão que se tem é que todo mundo erra. Mas não tem guarda específica nas ruas. Nos EUA, se o motorista fizer algo errado no trânsito, seja jogar lixo pela janela do carro na via pública ou não parar no semáforo, ele não anda uma quadra e é localizado pela polícia. As medidas de repressão são altíssimas.”
Com expressão de revolta, Gonçalo aborda o caso do primeiro-ministro da Itália, Silvio Berlusconi, acusado de ter pagado para ter relações sexuais com uma menor de idade em maio do ano passado. Berlusconi já esteve envolvido em vários outros escândalos, tanto políticos quanto sexuais, como no caso de outra menor com que teria tido um relacionamento e que teria levado sua mulher a lhe pedir o divórcio.
“Sílvio Berlusconi é uma vergonha para qualquer nação. Se envolve com corrupção e até hoje está no poder. E é de um país de Primeiro Mundo. No Brasil, o ex-presidente Fernando Collor caiu por muito menos [foi alvo de impeachment, em 1992, envolvido em suspeitas de corrupção, no famoso esquema organizado por PC Faria].”
Cada filósofo tem uma opinião. Gonçalo conta que, em sua obra, Platão proíbe o enriquecimento de governantes, eles não podiam sequer beber em taças de ouro ou prata. Já Thomas Hobbes diz que o homem é egoísta e mau por natureza. Por isso, o governo precisa ser detentor de poder para reprimir e castigar o cidadão. O medo fará com que a pessoa se “comporte”.
Otimismo
Gonçalo é otimista. Para ele, o cidadão não é mau, não age de má-fé e as irregularidades de abuso de poder no Brasil são menores que as que acontecem em outras partes do mundo. O Brasil é um país novo, analisa, que cresce assustadoramente e no qual a sociedade está aprendendo a lidar com a democracia e a corrupção. “O brasileiro está se manifestando contra [a corrupção].”
No caso de Delúbio Soares, ex-tesoureiro do PT, envolvido no escândalo do mensalão e que agora foi recebido de volta ao partido, o fato de a sociedade se calar não quer dizer que seja conivente com a corrupção. “As pessoas podem ter discutido em casa, com os amigos, no ambiente de trabalho e podem naturalmente não concordar com a volta. Mas fazer o quê?”, diz Gonçalo.
O discurso do filósofo Gonçalo Palácios é positivo. Ele não considera o índice de corrupção no Brasil avassalador. Para Gonçalo, o cidadão brasileiro é bem intencionado e não conivente com a corrupção. O problema está na morosidade do sistema Judiciário.
A lentidão não é uma particularidade do Brasil, diz ele. Europa, Rússia, EUA e China também sofrem do mesmo problema. Mas isso pode ser um fator contribuinte para o acontecimento de crimes. “Se existisse no Brasil um poder judiciário rápido e eficiente, haveria um avanço. Mas a sua falta acaba resultando em crimes. Alguns políticos os cometem e acabam inocentados e reeleitos. O crime prescreve. Isso é revoltante.”
Sem limites
Logo no início da conversa com o filósofo Ildeu Moreira Coelho, professor de Filosofia da Educação da Universidade Federal de Goiás (UFG), foi possível perceber que sua análise da corrupção é diferente da do filósofo Gonçalo Palácios, o que é natural. As pessoas não pensam igual.
Ildeu, que considera o assunto complexo e importante, diz que é errado achar que o brasileiro é corrupto por natureza. Ele acredita que a questão é social, educacional e cultural, mas não tem a ver com o caso específico de ser brasileiro. Em sua opinião, as pessoas estão perdendo todo e qualquer limite na busca pelo sucesso, a palavra mais usada hoje. “Há uma busca desenfreada por poder, dinheiro e prazer, tudo associado.”
Para o filósofo, o fato de a sociedade cobrar sucesso profissional, independência e estabilidade financeira faz com que as pessoas acabem passando “por cima de tudo”, isto é, contrariando leis e princípios, perdendo parâmetros. Isso, diz ele, acontece em qualquer lugar [do mundo], todos buscam mais.
Em um ponto, a avaliação de Ildeu se assemelha à de Gonçalo: sobre o grau de corrupção no País. “Há pessoas honestas, talvez mais do que a gente imagina, e políticos honestos, mesmo que poucos.”
Ildeu muda o tom de voz para falar que o combate à corrupção tem de partir dos poderes Legislativo e Judiciário, por meio de leis severas e de seus cumprimentos. Do contrário, a sociedade vai sempre querer tirar proveito de determinada situação e o político corromper ou se deixar corromper.
“Porque sempre tem a história de que o político tal é meu amigo, o fulano é meu vizinho; o parlamentar é da minha igreja.” Por outro lado, o empresário contribui financeiramente para a campanha do político, por exemplo, e depois cobra a fatura. É prefeito tirando de crianças miseráveis o direito de comer; juiz suspeito de corrupção exercendo cargo e político ficha suja atuando no Legislativo.
O filósofo conta história que aconteceu com uma aluna de filosofia na Europa. “Tendo esquecido o dinheiro em casa, ela pediu ao taxista para ir ao caixa eletrônico e ele falou que ela poderia pagá-lo no outro dia, estaria lá no mesmo lugar e horário. Ela perguntou: mas como, e se eu não vir? A senhora não fará isso porque se fizer não terei mais como acreditar na humanidade. Olha que coisa bela!”
É preciso valorização do bem público
Envolta as atividades diárias, a filósofa Helena Esser dos Reis, professora de Ética e Filosofia Política da Universidade Federal de Goiás (UFG), falou à reportagem depois de orientar a última aluna na aula do dia. Na sala de paredes claras, iniciou a conversa conceituando a palavra corrupção. “É degeneração e está ligada ao cidadão”, disse. “Não é um problema de moral privada.”
Helena acredita que para combater a corrupção é preciso valorizar o bem público. Para isso, é necessária a ideia de coletivo, o que não acontece no País. “A sociedade brasileira tradicionalmente sempre colocou seus anseios próprios em primeiro lugar. É extremamente hierarquizada e marcada pelas diferenças. As pessoas não têm ideia de vida comum.”
A filósofa cita Tiririca, deputado federal (o mais bem votado no País) no ano passado. Para ela, a mensagem do cidadão que vota no Tiririca é a de que ele gostaria de estar naquele lugar para aproveitar um pouco do sistema, ou seja, tirar proveito da posição que ocupa, ganhar benesses.
“Nos falta um sentimento de apreço pelo que é público. Isso tem de ser estimulado por meio da educação, tanto familiar quanto escolar. Mas não dá para se pensar nisso [na diminuição da corrupção] se temos uma pessoa que não sabe falar a própria língua, que não conhece o país onde mora, geograficamente e historicamente. E aí a pessoa que segue o princípio moral pode, por vezes, se corromper”, pontua Helena.
Problema tem raízes na antiguidade
A corrupção é um mal universal que varia de intensidade conforme a sua posição geográfica, avalia o doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e professor aposentado da Universidade Federal de Goiás (UFG) Joel Pimentel Ulhôa. Segundo ele, o suborno tem uma história que se enraíza na antiguidade. Está presente nos velhos impérios e até em organizações religiosas veneradas passando pelo período medieval, modernidade e viva ainda hoje na contemporaneidade.
“A corrupção não é atributo de nenhum povo em particular. Se manifesta especialmente no âmbito das relações de dominação na esfera de poder”, assinala Joel.
Na opinião do filósofo, a sociedade de desiguais, dos fortes e dos fracos, exploradores e explorados é campo fértil para a corrupção e para o império da “lei de Gérson” ou do salve-se quem puder. Para Joel Ulhôa, a corrupção sinaliza a degradação social e a banalidade a que se reduziram as instituições, a vulgaridade da autoridade, dos valores e princípios que dignificam o ser humano.
Joel opina que o mundo moderno acredita no “progresso”, mas que suas elites — que ele chama de poderosos de todos os matizes — querem fazê-lo estático, não tolerando mudanças que possam fragilizar o status quo e que nisso vale tudo. A escola, embora sofra a influência do meio e dos valores dominantes, diz Joel, poderia, se não fosse tão comumente destroçada pelo poder público e pelos interesses da ganância privada, ser um agente importante de mudança dessa situação em que muitos países se encontram.
Na opinião do filósofo Joel Ulhôa, a sociedade está sangrando, sofrendo e a cada dia perdendo mais as esperanças na possibilidade de um mundo melhor, mais digno. Demonstrando tristeza, ele diz que nas últimas décadas a corrupção se intensificou de tal forma que se pode dizer que o momento é de crise. No entanto, enfatiza que a palavra crise tem origem grega e significa algo como “parto”, um momento de dor, mas de espera que algo novo vai nascer.
“Essa espera, quem sabe, não é o prenúncio de novas razões de esperança de um mundo melhor, mais justo, limpo e com muito mais dignidade no trato da coisa pública e com as pequenas ações do dia a dia da vida privada.”
“O brasileiro se indigna”
Foi na área de lazer do seu prédio que o filósofo Anderson de Paula Borges, residente em Goiânia há menos de dois anos, debateu com a reportagem o assunto corrupção. Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), mudou-se em 2009 para Goiânia, onde é professor da Universidade Federal de Goiás (UFG). Especializado em filosofia antiga, ele diz que a corrupção é antiga, mas que o brasileiro nunca gostou dela, pelo contrário, se indigna com os casos.
O que acontece hoje, segundo Anderson, é que as pessoas têm mais acesso à informação e que a mídia, por sua vez, tem levado se não todos, muitos casos ao conhecimento da sociedade.
“Sempre houve desvios”, diz Anderson. “Ao contrário do que se pensa, o Brasil não está mais corrupto.” Para o filósofo, o papel da Polícia Federal no combate à corrupção tem sido fundamental. “Temos vistos muitos casos descobertos, o que é um ganho para a sociedade.”
Anderson sugere que a mesma vigilância seja feita na vida dos políticos. Ele acredita que o poder público é o lugar onde é mais difícil não se corromper. “Difícil entrar na política e não deixar se corromper. É preciso acesso às contas bancárias dos políticos. No caso das campanhas, por que a sociedade não é informada das doações de campanha?”
Filósofos explicam se a corrupção tem ou não tem fim
Gonçalo Armijos Palácios
“A corrupção nunca vai acabar. Sempre haverá alguém capaz de beneficiar um em prejuízo de outro; pais que abusam dos filhos, atos ilícitos na política. Mas nem por isso será a maioria. Não creio que todas as pessoas se disponham a fazer qualquer coisa para se beneficiar.”
Ildeu Moreira Coelho
“É concretamente possível acabar com a corrupção. É um processo social em que cada membro da sociedade tem de assumir seu papel. O cooperativismo tem de ser combatido, o jurisdicismo precisa acabar e as leis não podem ser feitas por pessoas que queiram burlá-las.”
Helena Esser Reis
“A corrupção não vai acabar por completo. Seu combate deve ser estimulado por meio da educação, em casa pelos pais, na escola pelos mestres. Atividades como o recolhimento certo do lixo, distribuição de brinquedos pelos alunos nas entidades carentes, tudo isso alarga e a criança se liga no mundo, se comprometendo com o bem comum.”
Joel Pimentel Ulhôa
“Tenho a esperança de ver um mundo mais justo e limpo e espero poder compartilhá-la com muita gente desta nossa terra querida que anda tão machucada por aqueles que tanto poderiam fazer por ela.”
Anderson de Paula Borges
“A corrupção não tem fim porque é uma possibilidade da ação humana. O que pode ser feito é combatê-la. O brasileiro tem vergonha de sair às ruas se for pego fazendo coisas erradas. Então as leis são meios de diminuí-la (a corrupção).”
Fonte:http://www.jornalopcao.com.br/posts/reportagens/a-corrupcao-nunca-vai-acabar
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