Para o professor Marcus Orione, adoção de cotas
sociais e raciais em institutos e universidades federais pode fazer com
que o Brasil periférico passe a ser o centro das preocupações nas
instituições de ensino superior
Aline Scarso, da Redação
O professor da USP Marcus Orione - Foto: Reprodução |
Professor da Faculdade de Direito da USP
(Universidade de São Paulo), Marcus Orione é um dos maiores defensores
da implementação de cotas raciais e sociais nas instituições públicas
como forma de corrigir distorções históricas entre brasileiros. Em
entrevista ao Brasil de Fato, ele rebate as críticas
comumente feitas por aqueles que são contrários à medida, discutindo
temas como a ameaça à meritocracia, o possível surgimento de uma nova
segregação racial, a impossibilidade de checar a veracidade das
informações oferecidas por cotistas e as consequências sociais das
cotas. Confira.
Brasil de Fato: Professor, como o senhor
avalia as cotas sociais e raciais do ponto de vista da ampliação de
direitos de negros, indígenas e pobres no Brasil?
Marcus Orione: A previsão de cotas,
para além da aquisição de um direito em si, é um fato decorrente das
lutas dos movimentos sociais, que impulsionam o país para uma maior
igualdade. Não se trata de uma concessão de quem tem o poder, mas de uma
luta da sociedade que consegue, por sua pressão, transformá-la em
realidade. A lei que contenha previsão de cotas, além de outras ações
afirmativas para estas populações fragilizadas, é aspecto formal de um
dado mais relevante: a luta de um país pelo fim das diferenças raciais,
étnicas e sociais. Na realidade, não se trata de conquista que cria
novos privilégios para estes setores, mas a que desfaz os privilégios,
hoje existentes, de uma elite branca brasileira que se esforça, de forma
irracional, para manter uma lógica que somente a prestigia.
A política afirmativa de cotas recentemente aprovada democratiza a Universidade e instituições federais públicas?
Considerada a igualdade, as cotas sequer fazem
restabelecer uma democracia que em algum lugar ou momento histórico
ficou perdida no país. A história do Brasil, para se realizar na sua
concretude, somente se consolidará quando os negros, indígenas e toda
sorte de pobres passarem de personagens secundários e massacrados para
os seus verdadeiros protagonistas. É inadmissível, por exemplo, se
ingressar numa Faculdade de Direito, como a do Largo de São Francisco, e
quase não se ver negros entre os estudantes e os professores. Os negros
presentes naquele espaço são, em geral, funcionários. Isto revela a
própria inversão do espaço público, que não traduz, geograficamente, a
realidade do país, mas que diz muito sobre a divisão do poder do Brasil.
Professor, há quem fale que as cotas são uma
“ameaça” à meritocracia. Há dados e informações que comprovem a
diferença entre o desempenho de alunos cotistas em relação aos alunos
não-cotistas?
O conceito de mérito é bastante relativo e depende
claramente dos valores que determinada sociedade tem como mais
importantes. Em tese, defende-se que aquele que mais merece possa
acessar a uma vaga nas melhores universidades. Mas o mérito não pode ser
vislumbrado apenas da ótica individual do candidato. É preciso superar
essa lógica capitalista. O mérito deve visto a partir da potencialidade
do candidato para melhor produzir conhecimentos, já que a universidade
é, em essência, um polo de geração destes conhecimentos. Portanto,
deve-se merecer não porque se é efetivo na perspectiva concorrencial de
um vestibular hoje caduco. Deve-se merecer porque é potencial gerador de
saberes. Certamente que, quanto mais plural for a universidade, maior a
sua potencialidade de gerar tal saber. No entanto, o saber gerado não
pode ser apenas o que mantém vantagens para grupos específicos. Isso
será sempre reproduzido se a clientela das universidades, em especial
nos cursos de maior procura, se mantiver sendo a elite branca,
proveniente em especial da classe média. O conhecimento precisa de
outras fontes, sob pena de gerar a manutenção do estado das coisas e não
impulsionar o crescimento do país, em todos os aspectos. Conhecimento,
enquanto poder, não deve ficar concentrado. Não falamos o mesmo quando
se trata do poder político e da necessidade de regras que potencializem a
rotatividade?
Por outro lado, ainda que sob a perspectiva clássica e
mais individualista do mérito, percebe-se atualmente que os alunos
negros e outros de segmentos mais pobres da comunidade não apresentam
rendimentos menos significativos do que o dos candidatos brancos durante
o curso superior, ainda que ingressando por programas de cotas. Estes
números estão presentes na experiência norte-americana, mas se encontram
também na realidade brasileira, como na Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UERJ), por exemplo. Em ambos os casos fica demonstrado que,
em especial com a existência de programas de apoios com bolsas de estudo
e aprendizado específico em áreas como português ou matemática, as
diferenças de desempenho são desprezíveis. Esta constatação também
aparece no caso da USP, em relação aos admitidos pelos programas de
inclusão que são direcionados para os egressos das escolas públicas. Em
especial na experiência da UERJ, os cotistas também são os que
apresentam menor índice de evasão escolar, o que é extremamente
importante pelo custo que cada vaga ociosa representa para os cofres
públicos.
Adoção de cotas pode fazer com que o Brasil periférico passe a ser o centro das preocupações nas instituições de ensino superior |
Os críticos também apontam a lei de cotas
como falha, dizendo que não será possível checar a veracidade das
informações sobre a renda dos estudantes e daqueles autodeclarados
negros e indígenas. Isso pode acontecer?
A UERJ desde o seu primeiro vestibular em 2003, em
que destinou vagas para as cotas, sempre utilizou o sistema de
autodeclaração. A autodeclaração é a forma mais correta de se tratar a
questão, sendo inclusive aquela recomendada por documentos
internacionais que tratam da questão racial. A razão é simples: não é
dado a ninguém dizer a respeito de uma condição inerente a outro ser
humano. Ora, não é razoável que se atribua a terceiros a dicção da
identidade alheia. Caso contrário, seria um poder conferido a um
terceiro sobre traço característico fundamental de certo grupo,
percebido na perspectiva de sua identidade. É poder demais de um homem
sobre o outro. No caso da UERJ, por exemplo, em quase dez anos, a
questão não suscitou grandes demandas sobre a veracidade das afirmações,
sendo que o controle, certamente, existe internamente no dia-a-dia da
universidade, onde convivem cotistas e não-cotistas. Registre-se que
certo escritório, ligado a movimentos sociais, colocou à disposição peça
judicial no seu site, para que qualquer um que se sentisse atingido
pela declaração inverídica pudesse ingressar em juízo contra aquele que
se utilizou deste artifício. No entanto, a despeito disto tudo, não há
uma quantidade significativa de fatos que coloquem em risco o sistema de
cotas daquela universidade. Acho, inclusive, que a melhor maneira de
controle, se é que ela realmente é necessária, seria a realizada pelos
movimentos sociais ligados à questão racial. Se estes entenderem que
esteja havendo fraude, eles devem agir em defesa da causa racial. No
entanto, acredito que não se deva começar a questão pela presunção de
má-fé. A boa-fé se presume. Se alguém agir com má-fé, certamente,
demonstrado o fato, há mecanismo jurídicos à disposição de qualquer um,
que se sinta prejudicado.
A mudança do perfil social das Universidades deve ter consequências em relação ao tipo de conhecimento científico produzido?
Inicialmente, e já está comprovado, o que reforça a
ideia de que o mérito não deve ser vislumbrado sob a perspectiva
individual, é que os cotistas, após formados, realizam de forma
voluntária maior prestação de serviços às comunidades pobres. Somente
por este argumento, não se justifica que sejam mais merecedores do que
os demais – considerado o mérito a partir do interesse da sociedade?
Assim, nos Estados Unidos, por exemplo, demonstrou-se que médicos
provenientes de sistema de cotas atendem duas vezes mais, como
voluntários, as comunidades pobres. Esta maior disposição também foi
demonstrada em relação aos cotistas da UERJ. A questão me parece clara e
nos fornece elementos para a melhor resposta da pergunta: quem é
forjado na solidariedade irá, com mais facilidade, gestar soluções
solidárias. Este dado é extremamente importante para o incremento das
pesquisas e do ensino nas universidades. Hoje, extremamente centrados em
óticas desocupadas da realidade social, certamente que, com a
modificação do universo de seus discentes, o centro das preocupações
seria outro, bem mais próximo de sua própria realidade. O Brasil
periférico seria o centro das preocupações, o verdadeiro Brasil passaria
a ser analisado nas universidades. O país tem problemas sérios que
poderiam ser melhor resolvidos se os cérebros existentes na universidade
estivessem efetivamente a seu serviço. No entanto, hoje preocupado
essencialmente com o seu futuro profissional, o jovem da elite branca
brasileira não pensa mais o país nas universidades, não busca mais as
soluções para os problemas nacionais, mas apenas para o seu problema
pessoal de como se virar no futuro profissional. É claro que existem
exceções, mas que, infelizmente, somente comprovam a regra.
Outra crítica às cotas é de que ela é uma
nova forma de segregação racial às avessas uma vez que reafirma a
identidade negra como forma de conseguir "vantagens" em relação a
brancos, mesmo que estes sejam mais pobres que os primeiros. Como o
senhor enxerga essa questão?
Esta é uma afirmação, no mínimo, equivocada. Para ser
segregada no nosso país, a raça branca, que se encontra em vantagem
histórica de séculos, precisaria de uma força oposta de mais alguns
séculos. No entanto, qualquer política de cotas, como é sabido por
qualquer um, é transitória. Assim, no instante de equilíbrio das forças,
observada a lógica do capitalismo, as cotas não seriam mais
necessárias. Além disto, não há que se falar em instauração de uma
divisão racial, hoje supostamente inexistente no Brasil. Primeiro,
porque a divisão racial já existe, basta ver a guerra travada nos faróis
entre as raças. Basta ver a cor dos que são dizimados nas periferias. E
assim por diante. O ódio racial, de ambas as partes, já está
instaurado, há muito, no país. As cotas irão, isto sim, acabar com a
segregação negra, sem que isto importe em uma segregação oposta. Não se
cria uma segregação acabando com a outra. Isto remonta a um raciocínio
primário e completamente desprovido de qualquer cientificidade.
Professor, os estudantes de escolas públicas,
negros e indígenas podem aguardar boas novidades sobre a possível
implementação das cotas nas Universidades paulistas?
Falarei especificamente da USP sobre a qual tenho
mais dados. A USP tem dois programas de inclusão social, chamados
INCLUSP e PASUSP. Ambos são voltados para os alunos egressos da escola
pública. No entanto, ambos são, a meu ver, completamente insuficientes,
em especial se analisarmos a questão da inclusão racial. Aliás, mesmo
para os fins principais a que se destinam, que é a inclusão do aluno de
escola pública, me parece que os dados não são tão animadores. Na sua
última edição atingiram apenas o índice de 28% de inclusão deste
segmento, sendo que a população negra correspondeu a 2,6%. A
insuficiência é apontada mesmo em documentos oficiais, que são
explícitos no sentido de que os alunos da Rede Pública que se
inscreveram para o INCLUSP, por exemplo, diminuíram sensivelmente desde a
concepção do programa. Veja-se, ainda, a baixa inclusão, especialmente
em cursos de elevada concorrência. No caso do curso de Direito do Largo
de São Francisco, conforme dados de março de 2012, a aprovação de
candidatos inscritos no INCLUSP não chegou a 9% e, na Medicina, por
exemplo, não chegou a totalizar 15%. Veja-se que, aqui, sequer estamos
falando em número de aprovados na perspectiva racial, que, segundo
fontes oficiosas, chega no curso de Direito do Largo de São Francisco, a
2%. Isso, aliás, é visível para qualquer professor, que, como eu,
ministra aulas para classes do diurno e do noturno. Mas alguns poucos
avanços, em especial do INCLUSP, devem ser aproveitados em caso de
aprovação de um sistema de cotas. Por exemplo, a admissão de que não
basta apenas o ingresso, sendo necessárias políticas para a permanência
dos alunos negros na Universidade como, por exemplo, os programas de
bolsas, que ajudam a evitar a evasão.
Da mesma forma, há dados interessantes que devem ser
considerados no discurso da admissão de alunos de segmentos menos
favorecidos da sociedade e que já estão demonstrados por ambos os
programas. Assim é fato que não é possível falar em baixo rendimento de
alunos provenientes destes segmentos em relação aos demais que cursam a
Universidade. Este dado, e já existem conclusões em outras experiências
no mesmo sentido, deve ser aproveitado para reforçar a política de cotas
raciais. Estas questões são importantes para a nossa reflexão a
respeito inclusive do que se entende por mérito nas universidades – que
passará a ser qualificado pela ideia de diversidade, indispensável ao
espírito universitário e que é potencializada no caso das cotas raciais,
sociais e para pessoas com deficiência. Infelizmente, no entanto, e
apesar destes dados, o Conselho Universitário, em recente reunião, ao
invés de tratar o assunto de forma mais contundente, resolveu apenas
promover uma série de debates a respeito do tema. Pessoalmente, e vendo a
evolução da questão no país, acho que a USP está ficando para trás e
isto custará, com o tempo, a perda de sua credibilidade enquanto
instituição pública e de qualidade de seu ensino pois não dará o salto
necessário para o enfrentamento das grandes questões nacionais.
Fonte:http://www.geledes.org.br/areas-de-atuacao/educacao/cotas-para-negros/16137-cota-nao-e-concessao-mas-resultado-de-luta
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