O racismo impregnado no pensamento da sociedade
Apesar do tempo que separa a Abolição da Escravatura no Brasil dos
dias atuais, os afro-descendentes permanecem discriminados no mercado de
trabalho. Os resultados de uma análise de conteúdo realizada com base em 58 reportagens na revista de maior circulação nacional, Veja, traduzidos neste paper,
revelam que o número de profissões ocupadas pelos afro-descendentes é
bastante reduzido em comparação às ocupadas e expostas pelo contingente
branco do país. Para além de qualquer questionamento sobre o preconceito
sutil que caracteriza os textos jornalísticos das reportagens que
compõem a amostra é importante evidenciar que a maior parte das
profissões exercidas pelos afro-descendentes não exige, ou pouco exige,
escolaridade regular, como é o caso de desportistas, cantores e músicos.
Introdução – A formação do povo brasileiro e a origem do preconceito racial
A organização da sociedade brasileira no período colonial estava
ligada ao controle do senhor de engenho pela submissão de seus
empregados livres e escravos. Estes últimos trazidos de diversos lugares
do continente africano foram obrigados a romper bruscamente com suas
raízes culturais, pois, eram distribuídos em grupos de diferentes
etnias, impedindo assim, a manutenção de seus costumes, como ilustra
Darcy Ribeiro (1995, 115):
"A diversidade lingüística e cultural dos contingentes de negros
introduzidos no Brasil, somada a essas hostilidades recíprocas que eles
traziam da África, e a política de evitar concentração de escravos
oriundos de uma mesma etnia, nas mesmas propriedades, e até nos mesmos
navios negreiros, impediu a formação dos núcleos solidários que
retivessem o patrimônio cultural africano".
A partir da inviabilidade de suas práticas culturais e do ilogismo na
adaptação dos valores e das tradições portuguesas, o africano foi
adaptando a sua cultura aos moldes brasileiros. Exemplo bem conciso,
segundo Ribeiro (1995, 16), está na língua portuguesa mais leve e na
religião católica menos ortodoxa.
"Simultaneamente, vão se aculturando nos modos brasileiros de ser e o
de fazer, tal como eles eram representados no universo cultural
simplificador de engenhos e das minas. Tem esse acesso, desse modo, um
corpo de elementos adaptativos, associativos e ideológicos oriundo
daquela protocélula étnica tupi que se consentiu sobreviver nas
empresas, para o exercício das funções extra-produtivas."
Outro aspecto que comprova tal fato advém do pós-escravismo, visto
que, depois da abolição, os negros foram entregues à condição de
mão-de-obra assalariada degradante, sistema não muito diferente da
sociedade colonial, até porque neste novo processo a escravidão
continuou de maneira implícita, estereotipada e discriminatória.
"As atuais classes dominantes brasileiras, feitas de filhos e netos
dos antigos senhores de escravos, guardam, diante do negro a mesma
atitude de desprezo. Para seus pais, o negro, escravo e forro, bem como o
mulato, eram meras forças energéticas, como um saco de carvão, que
desgastado era substituído facilmente por outro que comprava. Para seus
descendentes, o negro livre, mulato e o branco pobre são também o que
mais há de rele, pela preguiça, pela ignorância, pela criminalidade
muita vezes inata e inelutáveis", constata Darcy Ribeiro (1995, 221 e
222)
Essa aculturação inovadora do negro sem perspectiva de educação,
profissionalismo e capacitação, produziu estereótipos referentes a sua
imagem como: enfermo, perigoso e preguiçoso. É interessante notar a
conceituação mulata que se ocorreu no decorrer do tempo, seja pelo
embranquecimento dos negros, como pela enegrecimento dos brancos. Criou
assim, uma morenização de seus adeptos onde, não desejando a sua
inserção no imaginário popular do negro, também se distanciou da dita
cultura branca. A novidade na denominação de cores favoreceu outra visão
preconceituosa, dentre elas, a incidida pela classe social. O negro
sendo pobre é mais negro e possui menos aceitação social do que o negro
rico. Este último, ao mudar seu nível de renda, e conseqüentemente de
consideração social permanece enfatizado como modelo de superação.
Ribeiro (1995, 236 e 237) cita um exemplo claro acerca da situação das classes:
"Assim é que mais facilmente se admite o casamento e o convívio com
os negros que ascendem socialmente e assumem as posturas, os maneirismos
e os hábitos das classes dominantes, do que com o pobre e grosseiro,
seja ele negro, branco ou mulato, por sua efetiva discrepância social, e
sua evidente marginalização cultural."
No transcorrer cronológico do povo brasileiro, não houve uma proposta
construtiva a fim de solucionar a problemática do preconceito racial
dos negros. A mídia com toda a sua evolução tecnológica, englobou essa
temática num conformismo sustentado pela discriminação e segregação."A nação negra comandada por gente dessa mentalidade nunca fez nada
pela massa negra que a construíra. Negou-lhe a posse de qualquer pedaço
de terra para vender e cultivar, de escolas em que pudessem educar seus
filhos e de qualquer ordem de assistência", pondera Ribeiro (1995, 222).
Portanto, é evidente a estreita ligação que a história da formação
brasileira, transmite hoje aos acontecimentos sociais, emitindo
preconceitos e segregações entre as raças. A essência, a marca do
preconceito racial brasileiro, manteve-se a mesma. Os meios de
comunicação (neste caso, a revista Veja) absorveram a problemática, e não se preocuparam com uma crítica racional a suas conjunturas transladadas pelo tempo.
Gilberto Freyre (Casa Grande & Senzala, 1933, 307 e 432 ),
aborda o fato de como o negro foi usado na construção do país utilizado
como mão-de-obra, não só para os engenhos, mas nas lavouras, nas
marcenarias, nas criações de gado e que também serviu como fonte de
diversão e satisfação para senhores e senhoras de engenho quer
sexualmente, quer pelo simples gosto pelo mando. Os escravos eram
utilizados inclusive nas dependências pessoais da casa para substituir,
por exemplo, donas de casa para senhores viúvos, mães-de-leite para
senhoras brancas que não conseguiam alimentar seus filhos.
Os escravos exerciam ainda a atividade de professores dos filhos de
seus senhores. Nestes casos, eram mandados a aprender pelo menos os
estudos básicos nas cidades e eram trazidos de volta para ensinar aos
pequenos. A intenção era prolongar ao máximo a estada nas casas-grandes,
já que um dia haveriam de estudar nas cidades para, futuramente,
conduzir os negócios dos pais.
Esse comportamento de uso do negro em variadas atividades, porém, não
trouxe benefícios para os escravos. Eles continuaram à margem da
sociedade, fato que perdura até os dias atuais. Isso explica o fato das
profissões que aparecem em maioria para negros e para brancos:
mandatários e servidores quase como uma regra. Fato interessante de
ressaltar em Casa Grande & Senzala diz respeito ao uso de uma
espécie de "circo pessoal" de cada senhor de engenho. Os exemplos
citados por Freyre (1933, 434) revelam bandas musicais e pequenos
malabaristas que os senhores tinham entre suas "propriedades". A questão
do aculturamento do negro através desses "privilégios" que alguns
tinham de participar da sociedade branca traz também uma fenda que
possibilita uma explicação do preconceito entre os próprios negros e
afro-descendente.
O racismo existente hoje é ainda seqüela do período da escravidão.
Legalmente, a escravidão foi extinta e todos os seres humanos
tornaram-se iguais, com iguais direitos e deveres. No entanto, os
negros, com séculos de exclusão, foram jogados às ruas sem nenhuma lei
que os incorporasse à sociedade. Continuaram no mesmo estado de
inferioridade em que se encontravam antes. Na verdade, era difícil para
uma sociedade que tinha a inferioridade negra como verdade absoluta,
entender, de uma hora para outra, que eles eram seres humanos iguais aos
brancos. Dessa forma, o efeito causado pela escravidão que, por muito
tempo castigou os negros, deixou vestígios que ainda hoje permanecem.
Independente das adequações que possam sofrer as políticas
afirmativas, hoje bastante em moda no país, o mais importante de todo o
debate é perceber a inserção da população afro-descendente no
noticiário. Até então, a discussão sobre a exclusão e resgate da dívida
social com os descendentes dos escravos brasileiros era muito tímida. Os
espaços destinados aos negros e seus descendentes estavam bastante
definidos: o esporte (futebol e atletismo), a cultura popular (samba,
sambistas e afins) e as páginas dedicadas ao cotidiano violento das
cidades.
Jacques D’Adesky, em Pluralismo Étnico e Multicuturalismo: racismos e
anti-racismos no Brasil (2001, 66, 96 e 109), traz considerações sobre
esse aspecto. Ele afirma que o maior campo de ascensão profissional do
negro na sociedade situa-se em áreas ligadas ao esporte e à cultura. No
caso da cultura, sua maior inserção ocorre, mais especificamente, no
campo da música, do carnaval, do samba. Isso acontece, basicamente, pelo
fato de que essas atividades profissionais não exigem alto nível de
escolaridade. Assim, como o negro encontra-se geralmente nas classes
mais desprivilegiadas da sociedade, para eles é mais fácil alcançar
nessas áreas a ascensão social. Além disso, essas atividades – o samba, o
futebol – são, historicamente, ligadas à figura do negro, tido como
malandro ou desocupado.
A recusa do ser humano em aceitar em seu círculo de convívio pessoas
ou grupos possuidores de características diferenciadas das suas é e
sempre foi muito forte. Sejam fatores físicos, religiosos ou
ideológicos, essas características diferenciadas são quase sempre vistas
como ameaça. No que se refere à etnia, as diferenças foram, no decorrer
do tempo, motivos para conflitos e diversos pontos do mundo. Os grupos
humanos negam-se a aceitar a mistura de povos de diferentes etnias.
Parece que o ser humano tende a ver as diferenças físicas como indícios
de que a mistura entre as etnias não é natural e que, por natureza, elas
devem manter-se distantes umas das outras.
O Brasil é um país onde predomina uma miscigenação acentuada, sendo
muito difícil a classificação racial. A mestiçagem foi, historicamente,
tão intensa que praticamente não há mais pessoas puramente brancas ou
puramente negras. Apesar dessa constatação, o preconceito racial à moda
brasileira – menos conflituoso em comparação ao existente nos EUA – é
bastante difundido e perceptível na ocupação dos negros nas classes
menos desfavorecidas que integram a sociedade brasileira.
A questão, hoje, se manifesta de forma complexa. Como não existem
apenas brancos e negros, mas diferentes graus de mestiçagem, as formas
de racismo são múltiplas. O racismo do branco contra o negro, do mestiço
mais claro contra o negro, do branco contra o mestiço. O racismo que
discrimina pelo tipo de cabelo, pelo formato do nariz, etc. Em todo esse
contexto, observa-se, porém, que o negro está sempre na posição de
discriminado. As características físicas do afro-descendente são sempre
consideradas inferiores.
De acordo com Jacques d’Adesky (2001, 137), há uma escala vertical de
valores de raça, na qual o branco ocupa o topo e o negro ocupa o ponto
mais inferior. Os pontos intermediários são preenchidos por termos como
mulato, moreno, sarará etc. Assim, a discriminação manifesta-se sempre
contra um nível mais inferior dessa escala. Muitos mestiços procuram
classificar-se com termos "amenizadores". Referir-se a si mesmo com
termos como "moreno" é uma forma de elevar-se na escala, aproximando-se
do branco e distanciando-se do negro. Essa tendência de tentar ser menos
negro demonstra a não aceitação de sua própria raça.
Ainda segundo Jacques d’Adesky (2001, 70), existe uma dupla negação. O
negro nega a sua raça, deixa de afirmar-se como negro para tentar
aproximar-se de um padrão mais aceito e nega também sua própria cultura
negra. Assim, o negro recusa sua origem negra e sua existência como
negro para tentar aproximar-se de um padrão mais aceito e nega também
sua própria cultura negra. Desta forma, o afro-descendente recusa sua
origem negra e sua existência como negro para incorporar-se ao universo
dos brancos. Desprende-se de seus vínculos culturais originais em troca
da aceitação social.
Na verdade, geralmente não existe nem mesmo essas escolha. A falta de
contato com a cultura negra e o conceito já estabelecido pela sociedade
a respeito dela, distancia naturalmente o negro de sua origem. A mídia
dita padrões de estética, de música, de costumes como valores universais
e a dominação da raça branca sobre a mídia faz com que para todas as
raças chegue apenas a cultura predominantemente branca. O negro vive
imerso em uma sociedade dominada pela cultura branca que a torna quase
única. Não toma consciência de outras opções e assume o que vê ao seu
redor como verdade.
A cobertura informativa sobre minorias étnicas
O "racismo simbólico", termo que surgiu nos anos 70 como forma de
abordagem e diferenciação às hostilidades e ódios manifestos a
integrantes de grupos étnicos e imigrantes. As formas mais atuais de
xenofobia, racismo e preconceito contra grupos étnicos tem, por vezes, a
sutileza da sensação de incômodo, insegurança desgosto e, em muitos
casos, em medo e ressentimento (Dovidio e Gaertner, 1992).
Van Dijk (1990, 29 e 30), ao abordar análise sociológica, ideológica e
sistemática de conteúdos informativos realiza incursão sobre pesquisa
de Downing, Hartman e Husband sobre representação de mulheres e grupos
étnicos minoritários observa que alguns temas como o crime, a violência e
as drogas possuem probabilidade maior de terem como protagonistas
integrantes de minorias étnicas, conformando desta forma uma correlação
ilusória entre pertencer a grupos determinados e atividades
determinadas.
Recente pesquisa que analisou a cobertura jornalística da América
Latina na imprensa espanhola comprovou que 43,3% de um universo de 1.271
notícias referentes ao Novo Continente estavam associadas a resultados
negativos (Igartua, Humanes, Cheng, García, Golzio, Niño, Amaral,
Canavilhas e Gomes, 2003). Tais coberturas integram a denominação de
racismo simbólico porque incrementam a desconfiança entre os espanhóis
em relação à massa de imigrantes oriunda da América Latina.
Outro dado da pesquisa importante de ressaltar diz respeito as
diferenciações perceptíveis no tratamento noticioso que alguns países
recebem: Colômbia e Venezuela, por exemplo, associavam-se com temas
ligados aos conflitos armados, aos desastres e acidentes naturais;
enquanto Brasil e Argentina se associavam mais às questões econômicas e
ao desemprego, caracterizando o "ensalsamento" e o "desprestígio" na
cobertura informativa entre países.
Em estudos recentes, englobados pelo enfoque dos efeitos dos meios de
comunicação, desenvolveu-se uma corrente de estudo da cobertura
jornalística denominada teoria do framing ou enquadramento
noticioso. Nela, uma importante perspectiva de análise do tratamento
noticioso descreve o processo de produção jornalística segundo a qual os
meios de comunicação enquadram os acontecimentos sociais (1)
selecionando alguns aspectos de uma realidade percebida, (2)
conferindo-lhe uma definição concreta, (3) uma interpretação causal, (4)
um juízo moral e/ou (5) uma recomendação para seu tratamento.
Entendido dessa forma, a teoria do enquadramento noticioso (framing)
vai além da agenda temática: ela remete diretamente ao tratamento que as
equipes de produção e divulgação de notícias dão aos acontecimentos
sociais. Se é verdade que os meios de comunicação nos fazem pensar sobre
determinados temas em detrimentos de outros (estima-se que 70% das
informações que chegam as redações das empresas de comunicação são
descartadas por "falta de espaço"), é natural afirmar que, dependendo da
forma como determinados problemas ou fatos sociais são focados, as
opiniões e atitudes no público podem mudar.
As pesquisas sobre preconceito no Brasil
Alguns estudos e pesquisas realizados sobre a questão do preconceito
racial no Brasil desenham modos e formas em que o problema é reproduzido
pelos meios de comunicação de massa. Filmes, novelas ou mesmo o
noticiário televisivo ou impresso tem contribuído significativamente
para a consolidação de alguns estereótipos sociais bastante difundidos
no país. Em uma apressada observação nos meios é fácil a percepção dos
papéis sociais destinados à população afro-descendente: serviçais,
malandros, criminosos da periferia dos grandes centros urbanos em
produções cinematográficas e nas telenovelas e traficantes e malfeitores
em geral nos noticiários impressos e televisivos.
Ferreira Vaz e Brandão Tavares (2003, 5) abordam a representação
fotojornalística do contingente de negros e afro-descendentes em três
grandes jornais – Folha de S. Paulo, O Globo e Estado de Minas.
Eles observam que as páginas nobres (política e economia) são pouco
freqüentadas por personagens negros e afro-descendentes, contrastando
com as dedicadas aos problemas da violência urbana: "No universo desta
temática, o negro mestiço desponta com grande freqüência nas páginas dos
jornais. Seja como agente ou vítima, as fotografias expõem sua condição
de excluído ou de submisso a uma grande ordem social vigente. É nesse
conjunto que essa alteridade se faz presente e é através dele que muitas
vezes, podemos dizer, estereótipos são reforçados, propiciando a
manutenção de uma imagem negativa destes indivíduos".
Outro exemplo claro de espaços destinados aos negros e afro-descendentes encontra-se publicado na revista Política Democrática: de um total de 1.852 capas da revista Veja,
desde sua fundação, apenas 58 possuem personagens negros. Deste total,
somente 45 apresentam negros e afro-descendentes como protagonistas
(Golzio, 2004, 153).
Além da diferença proporcional de aparições entre brancos e não
brancos o artigo aborda a forma estereotipada de representação dos
afro-descendentes. "Uma outra questão que aflora, a partir dos números
encontrados nas capas da revista Veja, diz respeito à formação de
estereótipos a partir de imagens distorcidas da realidade. Das 58
aparições de negros em capas, de forma individual ou coletiva e
independente do grau de protagonismo que exercem, os negros possuem
basicamente dois tipos de representação: o esportista e o cantor"
(Golzio, 2004, 154)
Golzio (2004, 155) observa ainda que o futebolista e o sambista
integravam, até cerca de 30 anos atrás, o que tradicionalmente era tido
como "propício ao caldo de malandragem e de desocupados do país: o
futebol e o carnaval". A observação teve como base as incidências nos
temas relacionados para a análise de conteúdo, onde constavam um leque
de onze temas: política, economia, trabalho/sindicato, esporte, cultura,
ciência/descobrimentos, guerras/conflitos armados, violência urbana,
condição de negro, crime e outros.
O protagonismo em imagens destinado à população afro-descendente
brasileira é constituído de pontos bastante demarcados: protagonistas em
situações onde são afetados pela violência ou praticantes de atos
ilícitos. Ainda protagonistas como atletas de destaque (futebol e
atletismo com mais freqüência) ou como figurantes, como massa de
anônimos para dar reforço, em geral, a personagens brancos de destaque
ou afro-descendentes que compõem o raro e seleto grupo de negros que
emergiram graças ao talento para as artes (representação e música).
Nos últimos três anos aflorou com mais consistência a discussão sobre
reparação da exclusão social vivenciada pela grande parcela de
afro-descendentes no Brasil. Dentre as possíveis formas de integração
social encontra-se a adoção do sistema de cotas nas universidades, por
exemplo, proposta como reparação aos danos provocados pela escravidão e
pela situação social discriminatória em que se encontra a parte da
população caracterizadamente afro-brasileira.
A discussão sobre cotas para minorias tem se intensificado na
sociedade brasileira. A Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj),
por exemplo, já adota o sistema de cotas para afro-descendentes, desde
2001, tendo como base alguns critérios de cota mínima. O exemplo está
sendo seguido por outras instituições de ensino universitário, com
algumas particularidades. É o caso da Universidade de Brasília e, mais
recentemente, no curso de pós-graduação em Direitos Humanos da
Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
Apesar de ter a composição de sua população formada, em sua maioria,
de negros e afro-descendentes, a participação efetiva desta parcela de
brasileiros na vida social é estigmatizada se compararmos
proporcionalmente aos brancos. As oportunidades de empregos são menores
para negros que para brancos. Da mesma forma os salários pagos aos
trabalhadores brancos são, em média, bastante superiores que os pagos
aos afro-descendentes.
Entretanto, além da dificuldade de determinar que é ou não negro,
isso não deixa de ser uma forma de discriminação. A partir do momento em
que gera uma diferenciação é prejudicada a igualdade de direitos entre
os seres humanos. Os negros são novamente considerados inferiores, por
precisarem de vagas especiais. Além disso, é criada, agora, uma
discriminação contra os que não forem negros, sendo estes prejudicados.
Método
A presente pesquisa teve como método de trabalho o instrumento de
análise de conteúdo. Esta ferramenta tem sido largamente utilizada por
pesquisadores desde a década de 1960 e tem sido visto com desconfiança
por boa parte dos pesquisadores brasileiros por estar assentada em dados
empíricos. No entanto, ao tratar do método da Análise de Conteúdo,
Bardin (1996, 21), aborda o rigor e o descobrimento necessário à
pesquisa cientifica e argumenta que "recorrer a este instrumento de
investigação laboriosa de documentos é situar-se nas filas de quem, de
Durkheim e Bourdieu, passando por Bachelard, querem dizer não a ilusão
de transparência dos fatos sociais, rechaçando ou tentando afastar os
perigos da compreensão espontânea".
O método de análise de conteúdo, portanto é fundamental para evitar
abstrações e o uso de intuição que em muitos dos casos só reforça a
projeção da subjetividade do próprio pesquisador. Ao adotar
procedimentos sistemáticos de verificação e comprovação de hipóteses, a
análise de conteúdo se torna uma ferramenta para a descrição e
interpretação abalizada de mensagens. Trata-se de estabelecer, segundo
Bardin (1996, 31), de maneira consciente ou não, uma correspondência
entre as estruturas semânticas ou lingüísticas e as estruturas
psicológicas ou sociológicas dos enunciados. Não se trata de atravessar
pelos significantes para captar os significados da natureza psicológica,
sociológica, política, histórica etc., através de significantes ou
significados manipulados, enfatiza.
Por essa razão é importante esclarecer que os dados encontrados a
partir deste método foram analisados levando-se em consideração o
contexto político social do momento da publicação. Para tanto, uma ficha
de análise elaborada com o objetivo claro de obtenção dos significados
sociólogos e políticos da forma de representação social do negro e
afro-descendente das 58 reportagens de capas da Veja – de 1968 a 2003 – em que aparecem como protagonistas e coadjuvantes.
A elaboração da ficha de análise constituiu-se uma das atividades
mais importantes da pesquisa, já que definiu a apreensão da
representação adotada pela revista para o contingente de negros e
afro-descendentes. De todas as formas, vale lembrar o que observa Bardin
(1996, 23) quando o assunto é a planilha ou ficha de análise: "En el
análisis de contenido no existen planillas ya confeccionadas y lista
para ser usadas, simplesmente se cuenta com algunos patrones base, a
veces dificilmente traspasables. Salvo para uso simples y generalizados,
como es el caso de la eliminación, próxima a la decodificación, de
respuestas em preguntas abiertas de cuestionario adecuado al ampo y al
objeto perseguidos, es necesario inventarla cada vez, o casi".
A ficha de análise buscou identificar os temas em que, personagens
reconhecidos ou não do público, são enquadrados. Também teve a
preocupação de identificar os personagens mencionados no corpo das
reportagens e buscou estabelecer o nível de vinculação étnica e o fato
jornalístico gerador do espaço nobre da revista.
Amostragem
As 58 reportagens que integraram o corpo da pesquisa foram escolhidas
intencionalmente, com objetivo de estabelecer a continuidade de
pesquisa anterior que analisou a representação e representatividade do
negro e afro-descendente nas capas da revista Veja. O universo de
capas analisadas somava 1.852 revistas, dispersos entre todos os
números compreendidos entre o primeiro e o último exemplar publicado em
2003, ano em que a editora Abril comemorava os seus 30 anos de
existência.
Tal continuidade permitirá, no futuro, uma comparação entra a forma
de representação gráfica e abordagem temática com o corpo da reportagem e
as imagens publicadas. A comparação é pertinente para detectar,
inclusive, a relação entre o personagem e a capa com o conteúdo de
reportagem publicada. Em muitas ocasiões, os personagens que figuram nas
capas não passam de representações alegóricas e decorativas.
O passo seguinte se traduziu na busca dos exemplares das revistas que
continham as 58 reportagens que enfocavam um personagem com
característica afro-descendente na capa e localização das reportagens
correspondentes. De posse das reportagens, o processo seguinte foi a
criação de protocolo de categorias de análise para cada código ou
variável relevante e a proposição de um sistema de quantificação de cada
uma das variáveis. Selecionada as variáveis e desenvolvido um sistema
de categorias específico para cada uma delas, a providencia seguinte foi
a elaboração de um livreto de códigos (codebook), para garantir que os
codificadores tivessem um mesmo entendimento no momento de avaliar cada
critério ou variável.
Resultados
As 58 reportagens selecionadas como universo da pesquisa resultaram
em 117 unidades de análise (cada uma dessas reportagens podia gerar uma
série de unidades coordenadas relacionadas com a reportagem principal, o
que aconteceu em 94, 80% do total), já que elas foram subdivididas por
compartimentos noticiosos. Para cada apartado ou informação coordenada, a
reportagem principal passou a ser traduzida como unidade de análise
para efeito de contabilidade
Dados de identificação básicos
Em 86 das unidades de análise (73,5%) os personagens diretamente
relacionados com os fatos tratados foram mencionados ou ouvidos como
fontes de informação. Quanto a integrantes de governos identificou-se
uma pequena quantidade de aparições, ou seja, 15 inserções (12,8%). O
gênero jornalístico mais utilizado foi a reportagem com 102 unidades
(87,9%), a nota 06 unidades (5,1%), e notícia e entrevista com quatro
freqüências (3,4%). A maioria das reportagens é produzida pela redação
(59,8% do total), muitas das unidades pesquisadas possuíam mais de cinco
paginas, totalizando 45 unidades (38,5%).
A quantidade de negros ou afro-descendentes citados somou 307
personagens e os personagens brancos apareceram 395 vezes. Este dado é
bastante revelador, já que as reportagens selecionadas para efeito de
amostra tinham como referência a aparição de personagens negros ou
afro-descendentes, de forma integral ou parcial, através de
representação em imagem fotográfica, desenho, gráfico, foto-ilustração
nas capas da revista Veja. Em 24 (20,5%) das reportagens nenhum
personagem negro ou afro-descendente foi citado, enquanto que os
personagens brancos deixaram de ser citados em 34 unidades (29,1%).
Também é interessante ressaltar as aparições em imagens fotográficas
que acompanham as reportagens. No total, os personagens de
características brancas, aparecem 73 vezes enquanto que os personagens
negros e/ou com características afro-descendentes tiveram 65 aparições
em fotografias, independente do grau de protagonismo. A visibilidade dos
personagens de características européia (branca) contrasta com os de
origem africana, reforçando a idéia de embranquecimento populacional e
reforçando estereótipos.
Indicadores relacionados com o tema ou problema abordado
Os principais temas abordados em todas as reportagens são: o esporte
35 unidades (29,9%), cultura 24 (20,5%) e política 11 (9,4%). A
reportagem é moderadamente pejorativa em uma pequena quantidade de
exemplares (11,1% do total), mas que se somado ao tratamento burlesco
(9,4%) que algumas das informações trazem em seu interior pode ser
bastante significativo.
A análise do caráter do acontecimento foi retratada de três formas:
negativo 38 unidades (32,5%), neutro 40 (34,2%) e positivo 39 (33,3%),
demonstrando um equilíbrio bem definido nesse aspecto. Com relação ao
tom de relato foram detectados 62 unidades (53%) com abordagem neutra,
mas registrando grande equilíbrio entre o relato distendido 28 casos
(23,9%) e o tenso com 26 casos (22,2%).
Indicadores relacionados com os atores do relato
Em cerca de 45 unidades (38,5%) não existia ou não foi identificado
nenhum personagem principal. Porém, em se tratando dos personagens é
possível detectar que apenas 22 unidades de análise (18,8%) possuem
integrantes do segmento dos políticos, os personagens famosos integram
(50,4%) das unidades e em apenas 30 unidades (25,6%) os personagens são
pessoas normais, e em apenas seis unidades (5,1%) os personagens são
policiais.
Um dos principais fatos a ser destacado na questão do preconceito diz
respeito às profissões exercidas por negros e brancos, onde podemos
observar claramente a distinção entre eles. As profissões mais
freqüentes nos relatos jornalísticos para identificação do contingente
de personagens negros ou afro-descendentes são a dos atletas e dos
artistas. Já o contingente de personagens brancos citados nas unidades
de análise possui como profissões os atletas e políticos. Em princípio
estes dados podem parecer nivelados, mas é importante ressaltar que as
reportagens mais freqüentes nas reportagens selecionadas para efeito de
amostragem estavam relacionadas ao esporte.
No entanto, se é observado o leque de profissões citadas para brancos
e negros, percebe-se que o contingente dos afro-descendentes reúne um
leque bem menor do que as que foram atribuídas aos personagens brancos.
Os estereótipos sociais, desta forma, são mais comumente presentes, já
que as profissões ocorrem em variedades menores. Sobretudo, por não ser
exigido de atletas e profissionais da área da cultura a passagem por
bancos escolares regulares, o que acontece na exigência das profissões
liberais (engenheiros, advogados, empresários, médicos etc.)
Profissões de negros e afrodescendentes citadas na reportagens
|
Frequency |
% |
Valid % |
Cumulative % |
Valid |
|
34 |
29,1 |
29,1 |
29,1 |
|
agricultor |
3 |
2,6 |
2,6 |
31,6 |
|
artista |
21 |
17,9 |
17,9 |
49,6 |
|
atleta |
34 |
29,1 |
29,1 |
78,6 |
|
economista |
1 |
,9 |
,9 |
79,5 |
|
empresário |
1 |
,9 |
,9 |
80,3 |
|
enfermeiro |
1 |
,9 |
,9 |
81,2 |
|
escravo |
4 |
3,4 |
3,4 |
84,6 |
|
etnólogo |
1 |
,9 |
,9 |
85,5 |
|
funcionário público |
1 |
,9 |
,9 |
86,3 |
|
político |
14 |
12,0 |
12,0 |
98,3 |
|
professor |
1 |
,9 |
,9 |
99,1 |
|
vendedor |
1 |
,9 |
,9 |
100,0 |
|
Total |
117 |
100,0 |
100,0 |
|
Profissões dos personagens brancos citadas na reportagens
|
Frequency |
% |
Valid % |
Cumulative % |
Valid |
|
40 |
34,2 |
34,2 |
34,2 |
|
assessor |
2 |
1,7 |
1,7 |
35,9 |
|
advogado |
1 |
,9 |
,9 |
36,8 |
|
agricultor |
1 |
,9 |
,9 |
37,6 |
|
antropóloga |
2 |
1,7 |
1,7 |
39,3 |
|
artista |
12 |
10,3 |
10,3 |
49,6 |
|
atleta |
28 |
23,9 |
23,9 |
73,5 |
|
economista |
1 |
,9 |
,9 |
74,4 |
|
empresário |
3 |
2,6 |
2,6 |
76,9 |
|
enfermeito |
1 |
,9 |
,9 |
77,8 |
|
engenheiro |
1 |
,9 |
,9 |
78,6 |
|
escritor |
3 |
2,6 |
2,6 |
81,2 |
|
estudante |
1 |
,9 |
,9 |
82,1 |
|
fazendeiro |
1 |
,9 |
,9 |
82,9 |
|
jornalista |
2 |
1,7 |
1,7 |
84,6 |
|
locutor |
1 |
,9 |
,9 |
85,5 |
|
pintor |
1 |
,9 |
,9 |
86,3 |
|
político |
14 |
12,0 |
12,0 |
98,3 |
|
professor |
1 |
,9 |
,9 |
99,1 |
|
treinador |
1 |
,9 |
,9 |
100,0 |
|
Total |
117 |
100,0 |
100,0 |
|
Discussão
A pesquisa teve como objetivo verificar a presença do preconceito
racial em relação ao contingente de negros ou afro-descendentes, seja no
conteúdo dos textos, seja nas imagens das reportagens publicadas em 58
edições da revista Veja. Os resultados, significativos, estão
entrelaçados à história da formação social do Brasil.
Se no passado a organização da sociedade brasileira no período
colonial estava ligada ao controle do senhor de engenho pela submissão
de seus empregados livres e escravos, hoje se percebe o preconceito em
relação ao contingente de negros e afro-descendentes por parte dos meios
de comunicação nas formas simbólicas. Tal preconceito, maquiado, embute
uma forma mais amistosa e menos perceptível que os choques mais duros, a
exemplo da segregação vivida em determinados momentos da sociedade
norte-americana, na forma proibitiva de estar ou freqüentar determinados
lugares ou galgar posições sociais.
É, portanto, bastante perceptível que a inserção do contingente de
afro-descendente se dá nos temas que focam mais a cultura (20,5%) e
esporte (29,9 %). A imagem que se projeta a partir desta constância é a
de que os afro-descendentes tenham mais pendor ou aptidão para estas
duas áreas de atuação profissional. Outro aspecto que comprova tal fato
advém do pós-escravismo, visto que, depois da Abolição, os negros foram
entregues à condição de mão-de-obra assalariada degradante, sistema não
muito diferente da sociedade colonial. Nesse novo processo, o modelo
escravista continuou de maneira implícita, estereotipada e
discriminatória.
Conclusão
A pesquisa realizada trouxe resultados confirmadores das previsões
relativas à presença dos negros na sociedade. Não se trata apenas de
quantificar o grau de participação dos negros nas atividades
profissionais ou no universo social. Trata-se, principalmente, de
investigar como e quanto essa participação é retratada pela mídia. As
respostas a essas questões foram consideravelmente coincidentes com as
previsões feitas.
Ao analisar o conteúdo dessas reportagens de capa, as mesmas foram
classificadas de acordo com seu tema principal. Dessa forma, foi
constatada uma grande quantidade de ocorrências de matérias cujos temas
principais são esporte e cultura. Levando-se em consideração que cada
uma das revistas não possui apenas uma, mas várias unidades de análise
que integram a mesma reportagem, naturalmente os temas tendem a
repetir-se. No entanto, observou-se que há repetições que não ocorrem em
unidades de uma mesma revista, e sim em revistas diferentes. As
reportagens em que os assuntos abordados repetem-se inclusive na revista
Veja publicada em períodos diferentes são principalmente as que tratam
sobre a Copa do Mundo, as Olimpíadas ou o Carnaval.
A partir disso, pode-se concluir que a maior quantidade de incidência
de personagens negros nas reportagens analisadas ocorre em matérias que
tratam sobre esporte e cultura. É necessário analisar as razões dessa
pequena participação dos negros. É possível que os negros não tenham
maior presença nessas reportagens porque realmente não há grande
participação deles nas atividades e nos acontecimentos sociais. Porém,
há também a possibilidade de que apenas não seja do interesse das
classes dominantes que os negros ganhem espaço na mídia. O racismo está
impregnado no pensamento da sociedade de tal forma que se torna difícil
fazer com que a grande massa aceite a imagem do negro na mídia. Por essa
razão, vêem-se tão poucos atores negros nas telenovelas e quase nunca
em papéis de destaque ou mesmo principais.
Fonte:http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/o_racismo_impregnado_no_pensamento_da_sociedade